“Estou farto do lirismo comedido. Do lirismo bem comportado. Do lirismo funcionário público com livro de ponto, expediente, protocolo e manifestações de apreço ao Sr. Diretor. Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo do vocábulo.”
Palavras de Manuel Bandeira que chegou ao século vinte e disse logo a que veio.
Há quarenta anos morria o poeta que detestava ser chamado de poeta.
Vamos à memória para Manuel Bandeira.
Carlos Drummond de Andrade (poeta, em 1977): “Tenho a minha paixão pelos poetas velhos. Eu acho que é até uma espécie de solidariedade de classe. Eu coloco sempre em primeiro lugar, pela afetividade, pelo carinho que eu tenho por ele, e que ele tinha por mim, o Manuel Bandeira. É uma espécie de orientador, de pai poético que eu tive.”
Lygia Fagundes Telles (escritora, em 2004): “Aniversário do Bandeira, dia 19 de abril. Eu morava nesse tempo no Rio de Janeiro, eu estava no meu primeiro casamento, quando o meu marido era deputado federal, morava na Rua Aires Saldanha, Copacabana. Então ele descobriu que eu nasci dia 19 de abril. Ele disse: “Lygia, eu também nasci no dia 19 de abril. Nosso ponto fraco é a cabeça.” E ele fez um versinho: “Salve o dia 19 que nascemos os dois. Eu no século passado, Lygia um século depois.”
Manoel de Barros (poeta, em 2005): “Eu aprendi muita coisa com ele de linguagem. Uma vez eu fui a Recife para conhecer a rua da infância, da alegria de Manuel Bandeira. E quando cheguei lá, tive uma grande decepção, fui lá no bairro dele, na Rua da Aurora, e perguntei para as pessoas que caminhavam ali pela rua. Onde que era a casa de Manuel Bandeira? Onde é que ele morava? Ninguém sabia nada. Eu fiquei tonto e besta. É a minha admiração. Eu queria saber onde é que Manuel Bandeira morava, a casa dele. Não consegui saber.”
Lêdo Ivo (poeta, em 2000): “A amizade é um mistério. Você não pode explicar porque você se relaciona com as pessoas e não se relaciona com outras. No caso do Manuel Bandeira, eu sou obrigado a render-me a evidência de que foi um amor a primeira vista. Porque uma certa afinidade eletiva, uma coisa secreta.”
Edson Nery da Fonseca (escritor, 2002): “O traço todo da vida é um desenho de criança que acompanha o adulto por toda a vida. Então eu acho que por causa desse período que realmente é muito importante em nossas vidas, ele escreveu que em sua essência mais intima, ele era um pernambucano. Quando o Antônio Carlos Villaça disse que ele era pernambucano por acidente e carioca de coração, ele desmentiu categoricamente. Mesmo porque ele tinha pais recifenses, avós recifenses e por ai ia. Quando ele volta ao Recife, ele recente de não encontrar aquela cidade da infância dele. E ele registrou isso em alguns poemas, sobre tudo em um chamado ‘Minha Terra’. Em que ele conta: ‘Saí menino de minha terra. Passei trinta anos longe dela. De vez em quando me diziam: Sua terra está completamente mudada, têm avenidas, arranha-céus... É hoje uma bonita cidade! Meu coração ficava pequenino. Diabo leve quem pôs bonita a minha terra!’. Ele queria ver tudo como ele deixou.”
Ivan Junqueira (poeta, Autor de Testamento de Pasárgada, antologia crítica da poesia de Manuel Bandeira): “Ele dizia que aprendeu muito com os maus poetas. Aprendeu o que não fazer. E o Bandeira talvez seja também, o poeta mais culto da literatura brasileira. O homem que mais conhecia literatura, que mais conhecia os segredos de arte poética. Bandeira era um grande estudioso de poesia. Então ele aprendeu não apenas com os grandes poetas, como aprendeu também com os maus poetas. Ele inclusive detestava ser chamado de poeta. Quando os poetas contemporâneos dele diziam: “O poeta”. Ele respondia: “Poeta é o Dante”. De maneira que tudo isso faz parte de uma lição de economia. Eu não vou dizer de avarícia, mas de uma certa economia. Para que chegando então a palavra exata, ele pudesse estabelecer com o leitor uma comunicação absolutamente direta.”
Poema ‘Última canção do Beco’ de Manuel Bandeira: “Beco das minhas tristezas. Não me envergonhei de ti! Foste rua de mulheres? Todas são filhas de Deus! Dantes foram carmelitas... E eras só de pobres, quando pobre, vim morar aqui.”
Ivan Junqueira: “No primeiro livro de Manuel Bandeira ‘Cinza das Horas’, que ele publicou em 1917, portanto 5 anos antes da Semana de Arte Moderna. É ainda um livro de um poeta parnasiano. Mas quando você lê com cuidado aqueles poemas, você vê que ali já há um poeta moderno. Não há ainda um poeta modernista.”
Antônio Cândido (crítico literário, 1972): “O modernismo teve um grande mérito de romper esta carapaça, não romper de imediato, mas de abrir a possibilidade de uma experimentação constante. Abrir a possibilidade de atitudes inconformadas, atitudes de negação, que servem de plataforma para atitudes de construção. Fazendo isto, o Modernismo levou o espírito dos intelectuais brasileiros a uma atitude crítica em relação ao seu próprio país. E a possibilidade de uma criação muito mais rica e muito mais aberta para a vida moderna. Porque uma criação baseada não nos padrões cristalizados de uma arte permanente, eterda, mas nos padrões condizentes com o nosso tempo, isto é, no tempo baseado no provisório.”
Ivan Junqueira: “O Bandeira queria se libertar daquelas amarras. Amarras do verso metrificado, rimado. Ele queria fugir do modelo parnasiano. Do cárcere da poesia parnasiana. O modernismo então oferecia essa oportunidade raríssima. Era um momento em que toda a literatura brasileira passava por um momento de revolução.”
Poema ‘O último poema’ de Manuel Bandeira: “Assim eu quereria o meu último poema. Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais. Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas. Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume. A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos. A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.”
Ivan Junqueira: “O Manuel Bandeira realmente escreveu poesia como quem morre. E, no entanto, ele viveu através dessa morte a vida inteira. Essa convalescença se estendeu por quase toda a vida. Inclusive há coisas muito curiosas. Manuel Bandeira tinha um grupo no Rio de Janeiro, era ele, Dante Milano, Ribeiro Couto, Oswaldo Costa e Jayme Ovalle. Eles marcavam um encontro na Lapa sempre depois das cinco horas da tarde, nessa época Manuel Bandeira morava em Santa Tereza. Porque antes de 5 horas o Bandeira não podia sair de casa. Porque ele era alérgico a Sol. O Sol prejudicava a recuperação tão magnífica que ele teve dessa tuberculose. Afinal de contas, viveu falando naquela dama branca, viveu falando naquela senhora, já respeitável com a qual ele conversava que era a morte, e só foi morrer com 82 anos. É a maior convalescença da história da literatura brasileira.”
Poema ‘Canção do Suicida’ de Manuel Bandeira: “Não me matarei, meus amigos. Não farei, possivelmente. Mas que tenho vontade, tenho. Tenho e, muito curiosamente, Com um tiro. Um tiro no ouvido. Vingança contra a condição humana, ai de nós! Sobre-humana de ser dotado de razão.”
Edson Nery da Fonseca (escritor, 2002): “O poema Pneumotórax poderia ser escrito, poderia ser analisado sem referência ao fato de que ele foi tuberculoso. E tomou aquela injeção antiga de Pneumotórax.”
Poema ‘Pneumotórax’ de Manuel Bandeira: “Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos. A vida inteira que podia ter sido e que não foi. Tosse, tosse, tosse. Mandou chamar o médico: - Diga trinta e três. - Trinta e três... trinta e três... trinta e três... - Respire. - O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado. - Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax? - Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.”
Ivan Junqueira: “Quando ele foi examinado a primeira vez pelo Doutor Bormer, um clavadel. O Dr. Bormer disse o senhor tem lesões pulmonares incompatíveis com a vida. Ele estava condenado, daí aquele celebre poema, ‘Eu faço versos como quem morre’ chamado Desencanto.”
Edson Nery da Fonseca (escritor, 2002): “Eu estou lendo, estou acabando de ler A Grande Bela Correspondência de Manuel Bandeira com Mário de Andrade. E há uma carta de 1924 em que ele diz. Aquele poema ‘Desencanto’: “Meu verso é sangue, volúpia ardente. Tristeza esparsa, remorso vão. Dói-me nas veias amargo. E quente cai gota a gota do coração.” Foi escrito a 40 graus de febre e vomitando sangue.”
Ivan Junqueira: “É profundamente verdadeiro, sempre que você poetiza a partir da sua vivência real, você consegui transmitir seus sentimentos, seus pensamentos com uma força extraordinária. A coisa vivenciada é realmente sem igual.”
Edson Nery da Fonseca (escritor, 2002): “Tinha um senso de humor de compensava a desgraça da vida dele que foi a tuberculose. Aqui há um ensaísta jovem que escreve muito bem chamado Mário Hélio, que escreveu um Ensaio sobre o Manuel Bandeira chamado ‘Alegre ao tristíssimo’. Que define perfeitamente Manuel, suas palavras definem perfeitamente uma alegria triste. O livro Carnaval é alegre mais é triste também, ‘toda vida que poderia ter sido e que não foi’.”
Ivan Junqueira: “Manuel Bandeira é um dos poucos poetas da nossa literatura que tem poemas na cabeça do povo. Todo mundo sabe ‘Vou-me embora pra Pasárgada’, todo mundo sabe ‘Irene no Céu’. Porque é um poeta de uma comunicação muito imediata. Bandeira não perde tempo com adjetivo”.
Poema ‘Vou-me embora pra Pasárgada’ de Manuel Bandeira: “Vou-me embora pra Pasárgada. Lá sou amigo do rei. Lá tenho a mulher que eu quero na cama que escolherei.”
Ivan Junqueira: “Pasárgada desistiu as ruínas estão lá. Então a Pasárgada tem muito a ver com a questão da evasão. Quando Gonçalves Dias naquela celebérrima Canção do Exílio canta a saudade da terra. Na verdade aquilo não é uma evasão, pelo contrário, é uma volta a Mãe-Terra, ao seio original. Enquanto que o poeta modernista, particularmente o poeta moderno, ele cria o tema da evasão. O Manuel queria ir embora, ele não se importa com a volta, é uma ida sem volta. Ele vai embora, é a evasão. E o Bandeira foi um poeta muito ligado a esse processo da evasão de si mesmo e das coisas.”
Poema ‘Vou-me embora pra Pasárgada’ de Manuel Bandeira: “E quando eu estiver mais triste. Mas triste de não ter jeito. Quando de noite me der. Vontade de me matar — Lá sou amigo do rei — Terei a mulher que eu quero. Na cama que escolherei. Vou-me embora pra Pasárgada.”
Edson Nery da Fonseca (escritor, 2002): “Eu visitei ainda naquele apartamento que invés de olhar para o aeroporto em frente, que lhe dava lições de partir, ainda era um apartamento que dava para o pátio. Ali naquele quarteirão entre a Avenida Beira-Mar, Presidente Wilson e edifício São Miguel na esquina. E ele me recebeu. O que é que eu queria. Fazer perguntas para ele sobre certas passagens obscuras de alguns poemas dele. Às vezes parecia até uma coisa infantil, mas, por exemplo, há um poema em que ele diz: ‘Oh, as três mulheres do sabonete Araxá às 4 horas da tarde!’. Porque não podia ser as 5, não podia ser as 6? Ele disse: ‘Não. Isto é muito importante. Meu amigo Jayme Ovalle que entendia muito de mulher, achava que a mulher depois de tomar banho, não está boa para a cama, porque está com cheiro de sabonete, ela só está no ponto tendo tomado banho de manhã e as 4 horas da tarde.”
Ivan Junqueira: “Talvez Manuel Bandeira tenha sido o poeta da literatura brasileira que mais disse com o mínimo de palavras. A poesia do Bandeira é sempre muito austera e muito econômica. Nesse sentido, é que eu a considero subsentiva, quer dizer, dizer muito com muito poucas palavras. E esse é um fenômeno um pouco raro da poesia brasileira porque desde o romantismo, a poesia brasileira tem o vício do transbordamento. O poeta brasileiro se policia muito pouco. E quando você não se policia em literatura, e a meu ver em qualquer arte, você não consegue efetivamente se comunicar com o consumidor da sua arte. Então essa atitude da contenção é uma lição que poucos artistas são capazes de dar. Porque o transbordamento prejudica a comunicação com o leitor. As coisas precisam ser sintéticas, simples e diretas. E nesse sentido, Manuel Bandeira foi um mestre.”
Poema ‘Balada do rei das sereias’ de Manuel Bandeira: “O rei atirou Grãos de arroz ao mar. E disse às sereias: - Ide-os lá buscar.”
Edson Nery da Fonseca (escritor, 2002): “Ele era muito musical. Há um capítulo ai ‘Manuel Bandeira e música’, em que eu faço, creio que pela primeira vez, um levantamento de todos os poemas dele musicados. Daí a grande atração de compositores por musicar poemas dele.”
Tom Jobim (músico e compositor, 1994): “O poema ‘Trem de ferro’ de Manuel Bandeira que eu conheci muito. Ele ia muito à casa do Vinícius, ele era muito amigo de Vinícius de Moraes. E a gente encontrava com ele. Fomos também ao apartamento dele em Copacabana. E lá com Chico, ele pediu para o Chico tocar um negócio no violão.
Poema ‘Trem de Ferro’ de Manuel Bandeira: “Virge Maria que foi isso maquinista? Agora sim. Café com pão. Agora sim. Voa, fumaça. Corre, cerca. Ai seu foguista. Bota fogo. Na fornalha. Que eu preciso. Muita força. Muita força. Muita força. (trem de ferro, trem de ferro). Oô... Foge, bicho. Foge, povo. Passa ponte. Passa poste. Passa pasto. Passa boi. Passa boiada. Passa galho da ingazeira debruçada no riacho. Que vontade de cantar! Oô... (café com pão é muito bom).”
Poema ‘O Cacto’ de Manuel Bandeira: “Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária! Laocoonte constrangido pelas serpentes. Ugolino e os filhos esfaimados. Evocava também o seco nordeste, carnaubais, catingas... Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades excepcionais. Um dia um tufão furibundo abateu-o pela raiz. O cacto tombou atravessado na rua, quebrou os beirais do casario fronteiro. Impediu o trânsito de bondes, automóveis, carroças. Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro horas privou a cidade de iluminação e energia: - Era belo, áspero, intratável.”
Ivan Junqueira: “Eu acho que a poesia de Manuel Bandeira é isso, é bela, é áspera e é intratável.”